terça-feira, 6 de outubro de 2009

Conto - Realismo Fantástico

Sofrimento

Um tiro, assassinato, meu vizinho, duro como uma pedra, cai no chão. Em choque, vou para o hospital. O cadáver do meu vizinho junto a mim. Passo mal, uma dor medonha no estômago. Vinte dias de internação. Cinco dias de jejum, quatro dias vomitando. Sete quilos perdidos. O barulho do meu estômago se confunde com a minha fome. Soro na veia, glicose. A enfermeira me elogia minha lucidez ao passar pelo jejum, diz que admira os vegetarianos, como eu, enquanto uma pessoa que se alimenta a base de carne começa a se desorientar e delirar mentalmente com três dias de jejum.

Após a segunda cirurgia e o longo jejum para que meu estômago retome às suas funções, vejo a enfermeira com um prato de comida, meus olhos sobre minhas olheiras brilham de esperança. Era uma sopa amarela batida no liquidificador.Peguei aquele colher prateada, mergulhei no prato e ao se aproximar de minha boca pálida, meu olfato detecta algo , estranhei o cheiro, e já rejeitei aquela sopa.Me disseram que era comum eu achar o cheiro desagradável, já que se passaram cinco dias sem me alimentar pela boca. Sintia que aquele alimento pastoso havia algo que não queria aceitar.

Estavam tentando engordar meu corpo com outro corpo, mas eu não sobrevivo da morte dos outros seres. Senti aquelo gosto na primeira colherada, e minha certeza que havia carne era quase certa. Os enfermeiros negaram e orderam que eu comesse. Obedeci-os, e tomei mais algumas colheradas daquilo e me enjoava. Ao observar aquele líquido amarelo, notei a presença de algo que me chamou atenção, era um nervo. Eles diziam que não. Mordi. Tive a certeza era nervo. Arremecei o prato. Levantei da cama e com o soro alocado em minha veia fui até a cozinha do hospital e questionei a cozinheira: ela disse que sim. Meu mundo caiu. Queria vomitar, tudo que tinha ingerido até então: duas colheres de sopa. Quanta humilhação! Um organismo sendo obrigado a digerir cadáver triturado. Meus olhos que há minutos brilharam de esperança, apagaram-se em lágrimas. Foi uma violência extrema contra minha pessoa, algo que um descuido da cozinheira não justifica. Os enfermeiros diziam que a culpa era da cozinheira que havia trocado os paciente, enquanto ela dizia que não havia sido avisada. Por essa ignorância, ignoravam quaisquer possibilidades de alguém envolver ética, consciência ecológica na alimentação.

Inconformado, liguei a televisão para ver se minha frustação se apagasse por um curto momento e ao apertar o botão de ligar, o noticiário informa que o assassino que havia atirado em meu vizinho havia sido julgado e preso por tirar a vida de um ser. E em alto tom de voz meu pensamento vem à tona: até quando haverá justiça enquanto o homem empunhar uma faca e destruir aqueles que são mais fracos que ele. A brutalidade com que meu vizinho foi submetido e a humilhação que passei ao digerir o sofrimento de um animal há só uma diferença: a vítima. Pois além de tudo, alguém tem que cometer uma atrocidade para que eu digira um nervo animal.

Levantei-me e escovei os dentes várias vezes, mas aquele gosto cadavérico não saía. Minha boca virou sepulcro pra jogarem restos mortais dentro? Era um nervo – um nervo! O símbolo perfeito da sensibilidade, da dor, presente nos animais que respeito, e em mim mesmo! Eu tenho consideração profunda para com toda vida que tenha nervos, e não causo-lhes dor, sofrimento e morte. Os animais dividem convosco o privilégio de terem uma alma, apesar de não serem capazes de pensar, eles são capazes de sentir. Eles sentem frio, sentem fome, sentem dor.

Minha vida, desde então, passou então a ter sabor e odor de carniça! Pois, se nós vivemos num mundo onde um animal não tem o direito à vida, ao menos temos o direito de não participar de sua morte, seu sofrimento.

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